25.3.04

Desencontros

…pergunto-me se valerá a pena: penso nas suas pernas compridas, o peito amplo, os olhos rasgados, a sua boca grande. Certamente que ela não quererá mais do que eu próprio quero, falta-me descobrir a consistência da sua pele, agarrá-la pelos cabelos, andar à roda como a ventoinha suspensa no quarto do hotel, o corpo húmido de F. sobre o lençol de seda do Sião, e depois sair furtivamente, como um ladrão nocturno. Valerá a pena? Remorsos, sim, é verdade, às vezes tenho remorsos. Vejo-me em sonhos como um pássaro negro, crepuscular, alimentando-se nas sombras, nos desperdícios, nos destroços, das vidas alheias. Mas, afinal, o que se leva da vida, senão remorsos? Remorsos do que poderia ter sido e não foi e do que se perdeu depois de ter sido. Remorsos do que deveria ter sido feito e não o foi a tempo ou do que foi demasiadamente dito e feito. Remorsos destes eternos desencontros, desta sensação de que nada existe no seu tempo certo, de chegar sempre tarde ou partir cedo demais. Por que será que a seguir à noite vem sempre a manhã e de manhã pesa sempre nos olhos e na alma o que fez e desfez de noite – um corpo húmido deixado num lençol de seda e o ladrão furtivo desse corpo abandonado o quarto que não é o seu, em direcção ao vazio de tudo o que lhe pertence, inutilmente?...



Miguel Sousa Tavares
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